O tempo tinha passado depressa demais pra linda menina que bailava ao som das mais belas valsas. A pureza do olhar, a delicadeza dos gestos, a doçura da voz, tinham ido embora com o passar dos anos. Duros anos, que transformaram aquela delicada amante da arte em uma forte e determinada mulher de negócios.
Aquelas belas valsas que tocavam na vitrola de sua avó quando ela era mais nova, foram trocadas por desafinadas buzinas, milhares de vozes que tentavam uma sobressair sobre a outra, e diversos comprimidos para enxaqueca. Ela sentia falta daquelas melodias perfeitas, mas seu tempo livre era tão raro, que nem as melhores lembranças de sua infância arranjavam um lugar nele.
Aliás, ela acabava de se repreender por se pegar cantarolando, mais uma vez, aquela valsa, do segundo espetáculo que ela tinha feito quando criança. Essas distrações estavam se tornando cada vez mais comuns, mesmo ela fazendo de tudo para esquecer dessa nostalgia "estúpida" (pelo menos era o que ela dizia a si mesma para se convencer) e voltar aos negócios. Fazia muito tempo que ela trabalhava para conseguir esse importante projeto e não ia deixar nada atrapalhar. Nada.
Rascunhos e projetos na sua frente. Notas e melodias na mente. Água e remédios na mesa. Lembranças e valsas na cabeça. A caneta sendo usada cada vez mais forte. A música tocando cada vez mais forte...
Ela queria fugir. Talvez todos queiram fugir, mas poucos tenham coragem pra isso. E ela, os olhos viajando entre os comprimidos e as chaves, se indagava se teria a coragem necessária para abandonar tudo. Ela sabia que era um caminho sem volta. Se fosse embora naquele momento, sabia que uma nova vida começaria, e tudo que fora conquistado até o momento ficaria pra trás.
Os olhos continuavam viajando. Comprimidos, chaves, indecisão, atitude, certo, duvidoso. Os olhos pararam por um momento. E o brilho do metal das chaves era refletido no brilho do seu olhar. A decisão estava tomada. Já passava da hora de escolher.
Num brusco movimento, sua mão direita parou sobre o molho de chaves. A mão esquerda, livre, serviu para abrir a gaveta ao lado. Guardou a chave lá dentro, pegou o copo d'água, um comprimido para enxaqueca e engoliu. Um talvez fosse pouco, então engoliu outro, só por garantia.
Sorriu, por se achar tão idiota ao ponto de cogitar a idéia de largar tudo. Ela sabia que nunca faria isso. Seu passado de bailarina não passava disso. De passado. As valsas aos poucos iam cessando. O som dos rabiscos nos papéis foi tomando o ambiente. A bailarina não bailava mais. Pelo menos não as velhas valsas...
domingo, 24 de agosto de 2008
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